28.3.12
sobre o Millor
Quando eu era pequeno, o meu livro preferido era o "Millor Definitivo". Era uma coletânea de frases do Millor que eu me apressei em decorar. Sabia o livro de cor, do início ao fim (sei até hoje). Um dia ele foi lá em casa e minha mãe me apresentou: "Filho, esse é o Millor." Eu perguntei: "o Definitivo?". Ele passou a freqüentar nossa casa, junto com a Cora Ronai, sua companheira até o final da vida. E eu passei a frequentar a sala só para ouvir o Millor. E não me lembro de ninguém tão bom de se ouvir. O Millor falava sobre qualquer assunto, e era sempre engraçado e pertinente. Decidi que quando eu crescesse eu queria ser o Millor Definitivo. Mas ninguém nunca vai ser. Nunca.
em
1:05 PM
28.10.11
bernardo
A situação era desesperadora. Todos estavam certos de que tinham chegado ao fundo do poço. E eis que ouve-se, ao fundo, a voz de Bernardo Jablonski: "Calma, gente, podia ser pior." Todos se viram para ele, esperando ansiosamente a continuação da frase. E ele: "Não me ocorre nada agora, mas podia". E esse era o Bernardo: uma voz sempre calma e irreverente, equilibrando perfeitamente acidez e afeto, senso crítico afiado e um profundo amor à vida. Quando gostava de alguém, trazia a pessoa para perto, pela vida toda. Era muito bom ser gostado pelo Bernardo. Fazia a gente gostar mais da gente. E talvez por isso ele seja tão amado. Porque ele amava, profundamente, a vida, o teatro e todos nós.
em
1:05 PM
14.8.11
outros pais
Quando pequeno, nunca pensei que meu pai fosse substituível. Ele era uma espécie de criatura mitológica, saído de alguma revistinha da DC. Pegava jacaré com a mesma maestria com que tocava saxofone. No meu aniversário de 6 anos, trouxe para casa um bode, alugado na Tijuca. Foi a alegria da festa, e fez de mim uma criança popular na escola por um mês – “na festa dele teve um bode”. O bode teve que ser devolvido, mas seu cheiro nunca deixou nosso chevette.
A primeira vez que percebi que meu pai era mortal foi quando vi, do alto da escada, uma pequena clareira careca em seu cocuruto, do tamanho de um quipá. Fiz as contas: meu pai é um homem, os homens são mortais, logo meu pai é mortal. A morte do meu pai passou a me preocupar muito mais do que a minha própria morte (a morte da minha mãe nunca me preocupou, porque isso eu sempre soube que não acontece, e ponto). Arrasado com a falibilidade paterna, procurei sucessores à altura.
Quando adolescente, estagiando em comédia, boemia e fluminense, meu sonho era ser Hugo Carvana, mestre maior em comédia, em boemia e em fluminense. Cheguei a cultivar um bigode. Desisti quando ficou claro que ele nunca teria a opulência e a classe de um bigode do Carvana. E o fluminense agonizava na terceira divisão. E a ressaca me impedia de ser boêmio. Precisava de outro pai.
Fui até Paris, estagiar no Théatre du Soleil. Chegávamos as 8 da manhã no galpão gelado e saíamos as 5 da tarde. O que nos mantinha unidos, além dos cobertores, era a Ariane. Quando ela falava, o mundo parava para ouvir. Foi o mais perto que eu cheguei de uma experiência religiosa. Não sei se acredito em Deus. Mas acredito em Ariane Mnouchkine.
Éramos 200 atores, no total, e tínhamos que usar uma tarja com nosso nome, presa na blusa por um alfinete. Um dia, esqueci a tarja em casa. Levantei a mão para fazer uma pergunta. Quando lembrei que não tinha a tarja, já era tarde demais. Ela estava olhando para mim. “Sim, Gregorio”, ela disse. Olhei para minha blusa para confirmar que a tarja não estava lá. Não estava. “Sim, Gregorio”, ela repetiu. E eu não tinha mais nada a dizer. Ela sabia meu nome. Fiquei quieto, como um imbecil. Um imbecil com nome.
Voltei ao Brasil. Um dia, tocou o telefone. Era o Carvana, me chamando para o seu filme. Pensei que era trote. Mas aceitei na hora. Em se tratando do Carvana, até trote eu aceito. E não me arrependi. O filme foi demais. Só uma coisa me instigava. O Carvana tem um jeito específico de chamar as pessoas do seu círculo social. Não cabe dizer aqui, mas é uma parte do corpo, justamente um círculo, embora pouco social. O Carvana a usa como um vocativo, precedida, invariavelmente, pelo pronome possessivo. Assim: meu c... (Sei que é estranho ter três pontos para substituir uma letra só, mas eles não estão ali por economia, e sim, por pudor.) O fato é que eu me sentia incomodado quando ele me chamava de Gregório. Percebi então que o tal epíteto anal era restrito aos mais íntimos. Era como um título que merecia ser conquistado. Estava distraído quando ele me chamou pela primeira vez de seu c... Demorei para entender que era comigo. E nunca fiquei tão feliz de ser o c... de alguém. Eu não era um c... qualquer, eu era o c... do Carvana. E ser chamado de Meu C... por Hugo Carvana era como ser chamado de Gregório pela Ariane Mnouchkine: a glória.
(Quanto a meu pai, eu não devia ter me preocupado. Sua careca occipital só aumentou alguns centímetros. E ele continua pegando jacaré e tocando saxofone como ninguém.)
A primeira vez que percebi que meu pai era mortal foi quando vi, do alto da escada, uma pequena clareira careca em seu cocuruto, do tamanho de um quipá. Fiz as contas: meu pai é um homem, os homens são mortais, logo meu pai é mortal. A morte do meu pai passou a me preocupar muito mais do que a minha própria morte (a morte da minha mãe nunca me preocupou, porque isso eu sempre soube que não acontece, e ponto). Arrasado com a falibilidade paterna, procurei sucessores à altura.
Quando adolescente, estagiando em comédia, boemia e fluminense, meu sonho era ser Hugo Carvana, mestre maior em comédia, em boemia e em fluminense. Cheguei a cultivar um bigode. Desisti quando ficou claro que ele nunca teria a opulência e a classe de um bigode do Carvana. E o fluminense agonizava na terceira divisão. E a ressaca me impedia de ser boêmio. Precisava de outro pai.
Fui até Paris, estagiar no Théatre du Soleil. Chegávamos as 8 da manhã no galpão gelado e saíamos as 5 da tarde. O que nos mantinha unidos, além dos cobertores, era a Ariane. Quando ela falava, o mundo parava para ouvir. Foi o mais perto que eu cheguei de uma experiência religiosa. Não sei se acredito em Deus. Mas acredito em Ariane Mnouchkine.
Éramos 200 atores, no total, e tínhamos que usar uma tarja com nosso nome, presa na blusa por um alfinete. Um dia, esqueci a tarja em casa. Levantei a mão para fazer uma pergunta. Quando lembrei que não tinha a tarja, já era tarde demais. Ela estava olhando para mim. “Sim, Gregorio”, ela disse. Olhei para minha blusa para confirmar que a tarja não estava lá. Não estava. “Sim, Gregorio”, ela repetiu. E eu não tinha mais nada a dizer. Ela sabia meu nome. Fiquei quieto, como um imbecil. Um imbecil com nome.
Voltei ao Brasil. Um dia, tocou o telefone. Era o Carvana, me chamando para o seu filme. Pensei que era trote. Mas aceitei na hora. Em se tratando do Carvana, até trote eu aceito. E não me arrependi. O filme foi demais. Só uma coisa me instigava. O Carvana tem um jeito específico de chamar as pessoas do seu círculo social. Não cabe dizer aqui, mas é uma parte do corpo, justamente um círculo, embora pouco social. O Carvana a usa como um vocativo, precedida, invariavelmente, pelo pronome possessivo. Assim: meu c... (Sei que é estranho ter três pontos para substituir uma letra só, mas eles não estão ali por economia, e sim, por pudor.) O fato é que eu me sentia incomodado quando ele me chamava de Gregório. Percebi então que o tal epíteto anal era restrito aos mais íntimos. Era como um título que merecia ser conquistado. Estava distraído quando ele me chamou pela primeira vez de seu c... Demorei para entender que era comigo. E nunca fiquei tão feliz de ser o c... de alguém. Eu não era um c... qualquer, eu era o c... do Carvana. E ser chamado de Meu C... por Hugo Carvana era como ser chamado de Gregório pela Ariane Mnouchkine: a glória.
(Quanto a meu pai, eu não devia ter me preocupado. Sua careca occipital só aumentou alguns centímetros. E ele continua pegando jacaré e tocando saxofone como ninguém.)
em
1:31 PM
25.10.10
quando se perde um braço ou uma perna
quando se perde um braço ou uma perna
o membro perdido continua a coçar, reza
a lenda e a revista super interessante, e eu
que nunca amputei um braço ou uma perna
mas já perdi de vista algumas partes de mim
mesmo de vez em quando sinto coçar pessoas
que eu perdi de vista porque foram morar longe
cansaram-se de mim ou morreram de desastre
(poema publicado no jornal O Globo 23/10/10, Prosa e Verso, Coluna Risco p.3)
o membro perdido continua a coçar, reza
a lenda e a revista super interessante, e eu
que nunca amputei um braço ou uma perna
mas já perdi de vista algumas partes de mim
mesmo de vez em quando sinto coçar pessoas
que eu perdi de vista porque foram morar longe
cansaram-se de mim ou morreram de desastre
(poema publicado no jornal O Globo 23/10/10, Prosa e Verso, Coluna Risco p.3)
em
8:45 PM
24.10.10
Prosa e Verso
Poemas inéditos no Prosa e Verso do dia 23 de Outubro, na coluna Risco, de Carlito Azevedo. Já já eu ponho aqui. Enquanto isso procura lá.
em
5:40 PM
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