Rua Caio Mario

14.8.11

outros pais

Quando pequeno, nunca pensei que meu pai fosse substituível. Ele era uma espécie de criatura mitológica, saído de alguma revistinha da DC. Pegava jacaré com a mesma maestria com que tocava saxofone. No meu aniversário de 6 anos, trouxe para casa um bode, alugado na Tijuca. Foi a alegria da festa, e fez de mim uma criança popular na escola por um mês – “na festa dele teve um bode”. O bode teve que ser devolvido, mas seu cheiro nunca deixou nosso chevette.
A primeira vez que percebi que meu pai era mortal foi quando vi, do alto da escada, uma pequena clareira careca em seu cocuruto, do tamanho de um quipá. Fiz as contas: meu pai é um homem, os homens são mortais, logo meu pai é mortal. A morte do meu pai passou a me preocupar muito mais do que a minha própria morte (a morte da minha mãe nunca me preocupou, porque isso eu sempre soube que não acontece, e ponto). Arrasado com a falibilidade paterna, procurei sucessores à altura.
Quando adolescente, estagiando em comédia, boemia e fluminense, meu sonho era ser Hugo Carvana, mestre maior em comédia, em boemia e em fluminense. Cheguei a cultivar um bigode. Desisti quando ficou claro que ele nunca teria a opulência e a classe de um bigode do Carvana. E o fluminense agonizava na terceira divisão. E a ressaca me impedia de ser boêmio. Precisava de outro pai.
Fui até Paris, estagiar no Théatre du Soleil. Chegávamos as 8 da manhã no galpão gelado e saíamos as 5 da tarde. O que nos mantinha unidos, além dos cobertores, era a Ariane. Quando ela falava, o mundo parava para ouvir. Foi o mais perto que eu cheguei de uma experiência religiosa. Não sei se acredito em Deus. Mas acredito em Ariane Mnouchkine.
Éramos 200 atores, no total, e tínhamos que usar uma tarja com nosso nome, presa na blusa por um alfinete. Um dia, esqueci a tarja em casa. Levantei a mão para fazer uma pergunta. Quando lembrei que não tinha a tarja, já era tarde demais. Ela estava olhando para mim. “Sim, Gregorio”, ela disse. Olhei para minha blusa para confirmar que a tarja não estava lá. Não estava. “Sim, Gregorio”, ela repetiu. E eu não tinha mais nada a dizer. Ela sabia meu nome. Fiquei quieto, como um imbecil. Um imbecil com nome.
Voltei ao Brasil. Um dia, tocou o telefone. Era o Carvana, me chamando para o seu filme. Pensei que era trote. Mas aceitei na hora. Em se tratando do Carvana, até trote eu aceito. E não me arrependi. O filme foi demais. Só uma coisa me instigava. O Carvana tem um jeito específico de chamar as pessoas do seu círculo social. Não cabe dizer aqui, mas é uma parte do corpo, justamente um círculo, embora pouco social. O Carvana a usa como um vocativo, precedida, invariavelmente, pelo pronome possessivo. Assim: meu c... (Sei que é estranho ter três pontos para substituir uma letra só, mas eles não estão ali por economia, e sim, por pudor.) O fato é que eu me sentia incomodado quando ele me chamava de Gregório. Percebi então que o tal epíteto anal era restrito aos mais íntimos. Era como um título que merecia ser conquistado. Estava distraído quando ele me chamou pela primeira vez de seu c... Demorei para entender que era comigo. E nunca fiquei tão feliz de ser o c... de alguém. Eu não era um c... qualquer, eu era o c... do Carvana. E ser chamado de Meu C... por Hugo Carvana era como ser chamado de Gregório pela Ariane Mnouchkine: a glória.
(Quanto a meu pai, eu não devia ter me preocupado. Sua careca occipital só aumentou alguns centímetros. E ele continua pegando jacaré e tocando saxofone como ninguém.)

4 comentários:

Marcia Zanelatto disse...

sensa, meu velho gregório, sensa!

Anônimo disse...

gregório - tu é genial, desde os velhos tempos do tablado q a galera curtia tu sequelar - um abraço de seu contemporâneo tabladiano Daniel Cardoso, um dos homensdopantano, confira nosso som, se tiver paciência.

Anônimo disse...

gregório, você é lindo!

ps: um pedido: escreva mais.

Aline disse...

Estava com saudades dos seus eextos, suas poesias... reforço o pedido: escreva mais. é LINDO.